Ushuaia é uma cidade construída em torno de uma prisão-degredo. Na primeira metade do século XX, o governo argentino enviou para a região, então inóspita e disputada com o Chile, condenados por crimes de naturezas as mais variadas, de assassinos a presos políticos. A aposta era que as famílias os seguiriam e povoariam a região.
Aos condenados cabia erguer o presídio em que ficariam. Para isso eram levados cada vez mais longe, diariamente, em pequenas pranchas que deslizavam sobre trilhos, para cortar a madeira para construí-lo.
A foto que ilustra esse post mostra a paisagem atual da região. Sobre ela, Beckett talvez dissesse: “terra coalhada de ruínas”.
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Nós/eles é uma clivagem inerente ao ser humano, nada além da versão social daquela cisão original pela qual somos todos criados ao nos separarmos do outro. É quando a criança percebe a mãe como um ser independente que ela começa a perceber a si da mesma maneira, é quando entendemos outras pessoas como diferentes de nós que entendemos quem somos.
Se a existência de alguém diferente é condição necessária para que saibamos quem somos, ela também está na base das divergências e conflitos. Gostamos de pensar em divergências e conflitos como problemas, coisas a serem resolvidas. Gostamos mais ainda de pensar em nós mesmos como seres pacíficos que querem resolver os conflitos e administrar as divergências. E por isso perdemos de vista, muitas vezes, que o conflito e a divergência podem ser fontes de prazer e conforto.
Os outros, aqueles que percebemos como diferentes, nos dão algo de que todos precisamos: o contraste para saber quem somos. Mas precisamos, da mesma maneira, dos iguais, porque sem o igual o sujeito se tornaria não apenas diferente, mas excluído.
A existência do Outro é, portanto, uma dádiva-veneno.
Nossas eleições nos deixaram a tantos em estado de choque, perplexidade e imensa preocupação. As razões do choque: a “polarização”, a “cultura do ódio”, a “violência”.
Polarização, cultura do ódio e violência guardam entre si uma relação lógica, porém não necessária. Se é verdade que o outro nos define por contraste, disso não decorre necessariamente que a única relação que podemos estabelecer é o conflito. Ao contrário: a festa, a troca, a dádiva, são alternativas igualmente lógicas, igualmente possíveis. E, se hoje, em nosso atual contexto político, pode soar como absurdo lembrar disso, cabe então pensar no porquê dessa alternativa parecer ter saído da linha do horizonte.
A cultura do ódio é talvez o maior consenso desse processo eleitoral. E não é um paradoxo magnífico que tantas posições variadas, situadas ao longo de todo o espectro político, se igualem justamente nesse diagnóstico – é o outro quem me odeia, o outro quem me agride, o outro quem me ofende?
A cultura do ódio parece ter chegado assim a um paroxismo: concordamos com o diagnóstico e com o remédio, mas quem está doente é o outro. É ele quem precisa parar de me odiar, de me agredir, de me ofender. Em meio aos insultos recíprocos, chama a atenção a acusação mútua de “propagar o ódio”.
Em apedrejamentos, é preciso ser muito incauto, ou muito abnegado, ou muito idealista, para tentar interferir. Diante de uma turba em polvorosa armada com pedras, entrar no meio e pedir calma é se oferecer como alvo para a primeira pedrada. Em tempos de polarizações extremas, só há comigo e contra mim.
Entre os vários legados desse processo eleitoral, está a expressão “isentão”. Designa, pejorativamente, aquele que é visto como não se posicionando. E o “isentão” é alvejado pelos dois lados, porque é o outro dos dois grupos.
Mas o número de “isentões” foi imenso: mais de 40 milhões de pessoas se abstiveram, votaram em branco ou anularam o voto. É da mesma ordem de grandeza dos outros dois grupos que se polarizaram no segundo turno. Teriam todos esses não-votos o mesmo sentido?
Escutei de uma pessoa a seguinte explicação para seu voto nulo: ela achava que o que nos aguardava, qualquer que fosse o resultado das eleições, seria horrível. Por isso anularia: “para poder deitar a cabeça no meu travesseiro e pensar que, qualquer coisa que aconteça, não foi com o meu voto”.
Essa eleitora repete, sem saber, o mote de Hannah Arendt ao discutir o problema da responsabilidade individual: no fundo, trata-se da relação do sujeito consigo mesmo. E ela, avaliando as opções que tinha diante de si como igualmente ruins (embora por razões diferentes), decidiu pela isenção.
O voto nulo, aqui, é assertivo. É uma rejeição contundente das opções apresentadas, é uma recusa a se deixar apreender por uma oposição na qual não se reconhece. Quando a cultura do ódio apedreja esse posicionamento e transforma a isenção em categoria de acusação, negando-lhe a dimensão crítica e participativa, é aí que a violência se instala. Lembremos: uma definição possível de violência é como o avesso do diálogo, como aquilo que se instaura quando o diálogo não é mais possível.
A cultura do ódio parece assim encampar todas as possibilidades: ao outro a quem odeio, imputo a responsabilidade pelo ambiente de ódio por me odiar, em uma relação banal de espelho invertido. E juntos odiamos aquele que, na impossibilidade do diálogo e constrangido a expressar sua posição em uma dualidade em cujos polos não se reconhece, busca o apaziguamento junto ao próprio travesseiro.
Anular o voto é uma decisão que pode ter vários sentidos, da omissão pura e simples até a rejeição consciente de todas as opções apresentadas. Da mesma maneira, a própria lógica formal do segundo turno engloba os diversos posicionamentos, criando uma homogeneidade ilusória entre os eleitores dos dois candidatos.
Se é assim, se os votos em um, em outro ou em nenhum têm vários sentidos possíveis, cabe ainda falar em nós/eles? Não seria nós/eles uma maneira empobrecida de dar conta da diversidade de posições que foram constrangidas a encontrar seu canal de expressão nessa dualidade formal do segundo turno?
As Ciências Sociais têm, por marca de nascença, uma vocação crítica. Nós/eles é primário no duplo sentido do termo, ao mesmo tempo basilar e simplista, porque não dá conta da amplitude do que é ser humano, com suas misérias e contradições tão acirradas nesses nossos tempos interessantes.
Façamos, pois, nosso papel. Coloquemos sob escrutínio essa nova configuração da velha questão nós/eles, ainda que as pedradas venham, para que não acabemos, como os degredados de Ushuaia, coalhando a terra de ruínas para construir nossa própria prisão.
E, não é demais lembrar, a própria metáfora sugere cuidado: Ushuaia, a cidade mais austral do planeta, também é conhecida como o fim do mundo.